quarta-feira, 18 de março de 2009

Simba safari

O Rodrigo colocou um comentário interessante (tks!) sobre o último texto alguns dias atrás, e quando comecei a responder me dei conta que estava ficando muito longo, então resolvi aproveitar o gancho para continuarmos nossa conversa em um novo texto.
Abaixo a pergunta que faz parte do comentário:

"Na perspectiva mais "selvagem" do ser humano, o pré-conceito acabava por ser uma vantagem na sobrevivência. Explico, lá atrás o fato de um homem selvagem rotular um leão como ameaça o colocou em vantagem para que, logo ao ver o leão, reagiria rapido em fuga para salvar sua vida vida. Então a pergunta, não seria um pouco anti "natural" botar de lado este mecanismo humano ?? "


Talvez a forma mais direta de abordar este ponto seja lembrar que existe um tipo de ação / decisão que deriva da intuição e que não requer o processo dialético mental. A intuição é uma experiêmcia que todos nós já tivermos, mas é pouco compreendida, e isto é natural. A ‘compreensão’ linear da intuição é um processo que ocorre em nossa mente, a qual busca percorrer um processo linear dialético até chegar a uma síntese. No entanto a intuição não flui através do universo percebido pela mente linear, sendo mais um piscar brilhante de uma Realidade não-dual que – de alguma forma – escapa dos véus de separatividade que construímos com o ego e nos atinge. A mente linear não consegue compreender um evento que ocorre além das fronteiras que ela própria cria ao diferenciar o universo. É como se um habitante do universo de duas dimensões procurasse explicar o que é um cubo; ele pode chegar a entender um quadrado, mas não um cubo.
Ao nos depararmos com o processo mental linar habitual é importante invetsigar um pouco mais as funções do conjunto ao qual no ocidente chamamos simplificadamente de mente. Na filosofia Vedanta Advaita se empresta a visão “anatômica” sutil da mente ensinada na escola Samkhya. A mente, que para o ocidente é apenas um órgão, e mesmo filosoficamente na melhor das hipóteses a residência de uma consciência individual (que é por construção separada da realidade que está “fora”), é descrita como um conjunto chamado Antakarana (o órgão de sentidos interno, em analogia aos órgãos de sentidos externos) composto pelas seguintes funções: Manas, Chitta, Buddhi, Ahamkara. Chitta é a substância mental (memória), Manas é a faculdade de pensar, Ahamkara é o sentido de propriedade, e Buddhi a capacidade de discernimento (intelecto), o assento da consciência.
A percepção da realidade não requer a interferência do ego (Ahamkara) que se apropria do que percebe (dando um nome e forma). A agitação da massa mental (chitta) é causada por um processo de pensamentos caóticos, fora da oportunidade de lugar e tempo para que aconteçam; isto encobre a capacidade de discernimento (buddhi). A memória e a capacidade de pensar devem sim ser utilizadas – e muito intensamente – na correta oportunidade de lugar e tempo.
Vamos a um exemplo: um pesquisador deve sim utilizar os conteúdos de sua memória e a capacidade de associação pertinente ao pensar quando está escrevendo um novo artigo acadêmico. O instante presente neste momento pede que ele escreva um artigo, e para tal ele deve utilizar todo o maquinário mental que está ao seu serviço. O ato de refletir sobre o passado, associar idéias e conteúdos da memória e produzir um artigo (neste exemplo) pode ser feito de modo puro, sem a interferência do ego, sem a idéia de apropriação sobre o que se produz, sem a expectativa de benefício próprio em função do resultado que se produz. Uma ação efetuada desta forma é chamada “reta-ação”, não gera efeitos potenciais futuros (karma). A arte está em discernir o que o instante presente demanda de nós. Ou, em outras palavras, efetuar as ações conforme a correta oportunidade de lugar e tempo.
Instantes em que a realidade que acontece nos demanda intensamente nos levam imediatamente a estados de maior presença – isto é natural. Quando o leão (de verdade) aparece é fundamental que o homem possa rapidamente acessar o conteúdo de memória e reagir, tomando uma decisão. Quanto maior a presença neste instante mais inteligente e neutra será a ação tomada. A necessidade de prontidão para a ção implica total atenção e presença. Este é também o princípio das artes marciais. O resultado será tanto mais natural quanto menor a interferência egóica. Ao final, o melhor paradoxo: quanto menor a interferência de seu ego querendo um maior benefício para si mesmo, melhor o resultado obtido para todo o sistema envolvido.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Objetos e sujeitos

Parece tão seco discutir sobre sujeitos e objetos e as características do processo de cognição. Lembro das primeiras vezes que ouvi o Ivan explicar sobre o agente que observa (sujeito) e o que é observado (objeto). Pensava comigo mesmo “ok, mas no que isso me ajuda? Quero compreender a razão da existência, e não argumentar sobre ‘coisas’ que são observadas...”. It´s been a long way, e hoje algumas destas proposições são assustadoramente próximas da realidade cotidiana.
No ocidente nos parece tão óbvio que há um sujeito que vive imerso em uma realidade, e mais, que este sujeito é dotado de consciência, sendo esta última um atributo do primeiro, e naturalmente este sujeito é capaz de observar a realidade externa a ele. Assim nós cremos que a realidade é uma incessante fila de eventos da qual somos testemunhas.
Segundo a filosofia Vedanta Advaita isto também é verdade. O pequeno problema é a palavra ‘também’. Pois existem diversas possibilidades de percepção, ação e vida. Quando dormimos a realidade onírica é real enquanto dura o sonho, ou seja, para o ‘sujeito onírico’. Porém quando acordamos o novo sujeito (digamos vigílico, aquele que você está mais acostumado a pensar que é) percebe que aquela realidade onírica não era “real”, pois você acorda e percebe outra realidade.
Do mesmo modo existem outros estados possíveis de consciência em que o sujeito se dá conta de que o estado vigílico tampouco é real. Estes estados são observação, concentração e meditação. Uma das dinâmicas que mudam conforme se altera o estado de consciência é a relação entre sujeito e objeto.
Vamos considerar a situação em que estamos acordados (no sentido mais rasteiro), executando nossas ações no mundo, como trabalhar, se movimentar, etc. Chamemos de objetos qualquer coisa que possa ser observada ou sentida pelos sentidos. No estado vigílico usualmente percebemos os objetos à distância (particularizamos o objeto ao constituir distância cognitiva entre o sujeito e objeto), mas nem sempre foi assim. Basta observar uma criança e perceber como ela observa um brinquedo: ela está imersa no brinquedo. Nós temos esta capacidade inata de observar a partir da própria coisa observada! Neste modo de percepção não há diferença entre o que se observa e quem observa... Neste modo de percepção não há diferença entre quem ouve uma música e as próprias ondas e cenários que se abrem na melodia e ritmos. Neste modo de percepção não há separação entre o amante, o ser amado e o próprio amor.
Assim é um pouco como se o observador se percebesse observando o objeto a partir do próprio objeto observado. Isto é possível por um elemento de construção fundamental do universo: é a Consciência que – ao final – é testemunha e objeto simultaneamente de tudo o que ocorre. Esta propriedade não é do “eu”, do sujeito que pensa, como normalmente nos habituamos a construir a realidade em nossas mentes. Nós não somos (neste sentido) conscientes de um processo que ocorre externamente a nós. Nós somos parte integrante de um processo auto-consciente, auto-iluminado. Uma interpretação mental de nossa parte – que busca estabelecer um agente que faz a ação - apenas reduz o processo Consciente (maiúsculo) a uma sombra percebida por nós, como se agentes reais do que ocorre fossemos. A mente linear limita e diferencia uma Realidade que existe em uma dimensão que não pode ser percebida pela mente mesma.
Assim o ‘árido’ tema do observador e do objeto descortina trilhas inimagináveis de pesquisa e busca. Não é por menos que o mais profundo livro de Ivan se chama ‘Kshetra Kshetragna: El Campo y el Conocedor del Campo’.