quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Particular e total

No último encontro do grupo de meditação fizemos uma prática bem divertida (pelo menos eu achei...) de atenção externa. Algo como escolher um objeto e mergulhar nele por 20 minutos. Até, quem sabe, poder realmente descansar no objeto.
Como sabemos “as coisas são o que realmente são quando quem observa não é diferente do que é observado”. Hoje lia um livreto de quadrinhos zen antes de uma reunião em um belo escritório, e uma das tirinhas dizia algo como: a flor é uma flor quando quem a observa é uma flor. É o mesmo. Quando a atenção pousa sem esforço na realidade os pensamentos e interpretações cessam, e a permanência da atenção no presente leva a um estado em que a relevância do observador gradualmente diminui, e prepondera  o objeto (a realidade). Até que já não há alguém que observa algo, apenas o algo - apenas o presente e a realidade que se apresenta naquele instante. Há presença e consciência na realidade viva, sem a presença de alguém que se diga consciente de uma realidade viva.
Segundo o Vedanta Advaita a realidade não-dual é o que realmente existe; por conta de limitantes da mente nos habituamos a velar (a realidade não-dual) e projetar (uma realidade não real), a isto se chama maya. Um dos fatores limitantes, conforme explicado por Ivan, é o limitante espacial. 
A ver: podemos observar um objeto (externo ou interno) de duas formas, totalizando-o - nos perdendo no objeto - ou particularizando-o - ou seja, nos distanciando do objeto. Normalmente, quando estamos no dia a dia, nós, por hábito, nos distanciamos da realidade apresentada (através de pensamentos, interpretações, etc.). Por outro lado, quando estamos buscando a quietude interna nós, por hábito, mergulhamos em nossos  pensamentos e fantasias. Pois o que devemos fazer é justamente o oposto! Quando ativos no mundo devemos nos totalizar com o mundo, de modo que os objetos ganhem relevância, e não o sujeito que observa. Quando quietos internamente devemos nos distanciar do que se apresenta, ou seja, particularizar os pensamentos e emoções de modo que o observador ganhe relevância, e não os objetos.
Até parece algo técnico, frio... mas a prática mostra que é bem longe disso a experiência real. 
Experimentar, dia sim dia também, esta postura atenta pode mostrar novas trilhas, até, quem sabe, conseguirmos aprender a descansar na realidade que se apresenta para nós a cada instante.
abraços
marcos

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Poemas

Acho que já mostrei estes poemas de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) alguma vez no passado... mas, afinal, foi no passado. Vale a pena. Para aqueles que tem certa familiaridade com as questões que discutimos nos grupos de meditação vejam como estes versos são pílulas concentradas de alto impacto de filosofia da não dualidade. Divirtam-se.


O Universo

O universo não é uma idéia minha. 
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha. 
A noite não anoitece pelos meus olhos, 
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos. 
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos 
A noite anoitece concretamente 
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. 


Não Basta

Não basta abrir a janela 
Para ver os campos e o rio. 
Não é bastante não ser cego 
Para ver as árvores e as flores. 
É preciso também não ter filosofia nenhuma. 
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. 
Há só cada um de nós, como uma cave. 
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; 
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, 
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. 

Assim Como

Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer  pensamento,  
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,  
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.  
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.  
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.  
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.  
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.  


O Espelho

O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa. 
Pensar é essencialmente errar.     
Errar é essencialmente estar cego e surdo. 


Vive


Vive, dizes, no presente, 
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade; 
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente? 
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. 
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. 
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema. 
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas  
                como cousas. 
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar. 
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las; 
Vê-las até não poder pensar nelas, 
Vê-las sem tempo, nem espaço, 
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.  
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. 


abraços
marcos

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Mestre e amizade

Deixei Ivan no aeroporto hoje de manhã. Uns poucos dias, mas para mim meses. Como será possível expressar a riqueza desta visita, a boa sorte de poder passar horas e dias na presença simples e plena de uma pessoa que realiza o que é a Realidade, a inescrutável sensação de alegria e responsabilidade de ter esta verdadeira amizade.
Em uma de nossas conversas desta semana Ivan me explicava (já que eu não parava de fazer perguntas...) os diferentes tipos de professores: Gurus, no sentido original, cuidam de seus discípulos como pais cuidam de filhos, de modo mais paternalista; já um Rishi (que já não existe hoje em dia) acolhia uma criança em sua casa, como se fosso de sua família, e lhe ensinava até ficar mais velho, quando então este saía para o mundo. Por fim existem os Nagas, mestres que fundamentam sua relação com os discípulos através da amizade profunda, da disponibilidade de estar ali para ensinar. É esta a qualidade de mestre de Ivan, um Naga, como todos que estiveram no Instituto este final de semana puderam presenciar nas palestras, na proximidade das conversas durante os cafés, na alegria de estar ali para ensinar.
Uma outra característica de um Naga é que o discípulo normalmente desenvolve um certo grau de independência em suas pesquisas e caminho (o que não é usual no caso de Gurus). Por conta disso é tão bem encaixado o papel do Naga na tradição Vedanta Advaita, uma tradição que através da curiosidade e das indagações leva os discípulos a uma natural postura de auto-indagação, e assim os leva a construir com seus próprios pés seus caminhos.
Ivan deixa uma série de sementes. Quanto a mim, uma série delas percebo, muitas outras apenas intuo.  Ainda há outras que são apenas a sensação de que algum aprendizado ocorreu, embora eu não saiba bem como, nem em que esfera. Como quando passamos um par de horas conversando em uma chopperia à tarde, e em um certo momento em que a conversa fluiu de modo profundo, como um avião que faz uma espiral descendente depois de alguns círculos de aproximação,  minha mente não se movia, não tinha para onde ir, apenas se misturava às informações que fluiam. Um sentido muito real e brutal se fazia aparecer através de ecos distantes em minha mente enquanto continuávamos sentados, embora um universo inteiro parecesse ter se movido. Assim é a alegria e a responsabilidade de conviver com Ivan.
Agora seguiremos com nossos próprios pés e pernas, nossa prática, nossas conversas. Seguimos com maior energia, maior curiosidade, talvez mais dúvidas, talvez menos certezas, e certamente com mais alegria.
abraços
marcos

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Sobre flechas e karma

Nossa compreensão usual sobre o karma carrega a idéia de culpa e ‘coisa ruim’. Tão longe desta sombra está a definição original deste conceito hindu. Talvez uma das imagens mais didáticas utilizadas para explicar o karma seja aquela das flechas: passamos a vida a atirar flechas para o alto, e, como sabemos, um dia elas cairão. Estas flechas que atiramos são impulsionadas pelo desejo fundamentado na sensação de individualidade do “eu” (ahamkara). A incessante busca pelo fruto, pelo benefício das ações que fazemos, associada à sensação de sermos os agentes da ação, produz uma modalidade de ação no mundo que gera tendências. No tempo linear estas ações cheias de desejo são as flechas lançadas, por exemplo, hoje, neste ano, neste ciclo de vida. Estas flechas cairão, certamente, e isto ocorrerá no futuro. Estas tendências serão concretizadas ao longo de outros ciclos de vida.  
Assim, a construção de nossa vida atual é uma integração de um núcleo de tendências mais fortes (chamadas samskaras em sânscrito) que se conformam no momento de início de um novo ciclo. Esta integração das tendências forma, como em um imenso colar, todas as pérolas que encontraremos em nosso ciclo presente. A isto se dá o nome de Prarabda Karma, o caminho a ser percorrido nesta vida. Deste caminho não se escapa. 
Mais divertido é considerar isto pelo seguinte ponto de vista: imagine que este imenso colar foi o presente mais detalhado e bem construído que as inteligências superiores poderiam ter feito para que você experimentasse cada instante da sua vida com o aprendizado perfeito (vejam bem, perfeito...) para sua própria existência. Isto é o Prarabda Karma. E como se faz para experimentar este presente divino? Estando presente a cada instante (surpresa!). A cada segundo em que criamos uma realidade a partir de nossos pensamentos e novelas estamos desprezando o universo, desprezando um finíssimo presente preparado de forma absolutamente individual para cada um de nós. Divertido não é?
E o mais elegante é que se estamos de verdade presentes, experimentando este presente (em duplo sentido), naturalmente nossas ações serão corretas, e assim não estaremos lançando novas flechas. Presentes, não há um “eu” que possa se apropriar ou iniciar uma ação a partir de seus desejos e egoísmo. Com este fluir no presente atinge-se uma vida em harmonia com seu próprio karma, ou seja, o Dharma.
Porém, se seguimos agindo, seja por omissão ou ação, do alto de nossa ignorância, seguimos lançando novas flechas e gerando outras tendências, novo fluxo de karma, que recebe o nome de Agami Karma. Nesta perspectiva estamos continuamente impulsionando a grande roda de morte e renascimento, também conhecida por samsara.
Cabe a nós, a partir de exatamente agora, nos propormos a encontrar o presente a cada momento, nos propormos a buscar o discernimento sobre o que o presente requer de nós, nos propormos a aceitar um colar de pérolas maravilhoso construído especialmente para cada um: se entregar a cada instante, de agora até o último suspirar. 


PS: este final de semana temos Sesha no Brasil, para os que ainda não se inscreveram, há tempo. Oxalá esteja no karma de vocês poder ter contato com Sesha, um aprendizado com um valor tamanho que não pode ser medido.


abraços
marcos