segunda-feira, 21 de julho de 2008

O pasmo essencial

Hoje não tenho melhor alternativa que compartilhar com vocês a aula de Presença que é este poema de Fernando Pessoa.
Bom proveito.

O Meu Olhar
(F. Pessoa /A. Caeiro)

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Epifania

Definições usuais de epifania:

“A Epifania representa a assunção humana de Jesus Cristo, quando o filho do Criador dá-se a conhecer ao Mundo. A Epifania do Senhor (do grego: Ἐπιφάνεια, : "a aparição; um fenômeno miraculoso") é uma festa religiosa cristã que... passou a ser comemorada 2 domingos após o Natal.”
“Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. O termo é usado nos sentidos filosófico e literal para indicar que alguém "encontrou a última peça do quebra-cabeças e agora consegue ver a imagem completa" do problema. O termo é aplicado quando um pensamento inspirado e iluminante acontece, que parece ser divino em natureza (este é o uso em língua inglesa, principalmente, como na expressão I just had an epiphany, o que indica que ocorreu um pensamento, naquele instante, que foi considerado único e inspirador, de uma natureza quase sobrenatural).”
Adoro estas definições... “quase sobrenatural”, como se soubéssemos definir o que é natural, como se a vida que levamos imersos nos labirintos dos desejos, apegos e moto-contínuo de pensamentos - gatos enredados em um novelo de lã sem fim - fosse natural.
Não é interessante esta palavra, epifania? Todos já vivemos vários momentos como esse em nossas vidas. É um instante de compreensão verdadeira; um instante em que nos sentimos não diferentes de tudo o que nos cerca; um instante de amor por tudo e todos; um instante de paz profunda. Ou tudo isso ao mesmo tempo.
Nos grupos de prática sempre pergunto por estes instantes, e invariavelmente a resposta é que sim, este momento já existiu em minha vida. Alguns se lembram do instante em que ouviam uma música e por um momento a música e o ouvinte eram uma só coisa, um arrepio corre o corpo, todas as sensações se ampliam, cada instrumento e voz é ouvido separadamente e integrados ao mesmo tempo. Outros se lembram de surfar aquela onda perfeita e o silêncio profundo daqueles segundos de harmonia perfeita entre onda, prancha e surfista. Outros ainda se recordam de uma compreensão profunda – uma grande ficha que cai e parece que o mundo todo espera, num tempo mais lento, enquanto o todo faz algum sentido – e qualquer um que já presenciou isso sabe da potência do brilho dos olhos deste momento.
O que todos estes instantes – epifanicos – tem em comum? O “eu” da personalidade não está lá. É verdade, não está. Se ele estivesse não seria uma epifania. Não é o pequeno eu que passa por estas experiências; mas quando ele está ausente, então elas podem ocorrer. O motivo é simples: estas experiências passam muito longe do pensamento comum; enquanto nossos “canais” estão entupidos com pensamentos não é possível que qualquer outra coisa seja perceptível. Quando deixamos nossos canais vazios de pensamentos, outras percepções podem ocorrer. O “eu” apenas se apropria destas experiências (memória) depois que elas passam.
Segundo o Vedanta, em parte similar às proposições de Patanjali, temos diversos estados de existência ou consciência: sono, pensamento, observação, concentração, meditação e samadhi. Nós vivemos 99,9% de nosso tempo nos dois primeiros. Estes instantes de epifania pertencem aos outros estados, na maioria das vezes ao estado de observação ou concentração.
O “eu” enquanto sujeito só está presente enquanto pensamos. Ele não tem continuidade (nem enquanto dormimos). Entretanto nossa civilização ocidental tem como um dos principais cânones o “eu” como sujeito permanente e separado do mundo real – basta ver o nó filosófico que as implicações da física quântica causam ao demonstrar que o observador (o sujeito) altera a realidade.
O Vedanta explica que para cada um dos estados de consciência há um sujeito correspondente – até chegar ao estado de meditação em que o sujeito é Atman, “...o sujeito que conhece o universo enquanto simultânea e ubiquamente conhece a si mesmo.(*)” A permanência no estado de meditação leva ao Samadhi, estado em que se é Sat-Chit-Ananda: Existência, Consciência e Bem-aventurança infinitas e absolutas.
Entre a meditação e o pensamento temos a possibilidade de experimentar os estados de observação e concentração, em que a outros sujeitos é permitido atuar – e ao que ás vezes damos o nome de epifania.
Como podemos ver há muito o que se explorar além do nosso novelo-novela de pensamentos e fantasias, e o caminho é a prática.

(*) Ivan Oliveiros