quarta-feira, 26 de maio de 2010

Onde tudo começa

Conversava outro dia com uma pessoa que buscava traçar paralelos entre as várias visões de diferentes linhas filosóficas e de busca. Me deparei com uma sutil questão - e muitas vezes estas sutilezas estão densa e concretamente exteriorizadas em palavras. Apareceu delicadamente em uma frase algo como “... e então evoluímos para...”. O que está oculto por trás desta simples colocação? 
A primeira grande ilusão aí oculta é o conceito de algo que evolui. 
A segunda grande ilusão é condição para a primeira, e pode ser resumida na certeza de que a mente individual é consciente em si mesma. 
Esta sutil condição permite o alastramento da falsa sensação de individualidade - de algo que se acredita ator e agente da realidade. Este ator - que só existe quando é recordado, isto é, quando a memória é agitada - se crê em evolução em direção a um outro estado. A ilusoriedade da existência do ator é suficiente para negar a condição de evolução real. Um estado de vida no instante presente  - ainda que fugaz - já não permite a existência deste ator. Assim não há quem evolua; se é que se pode considerar um estado de consciência presente mais “evoluído”, o eu (ator) já não faz parte deste estado. Também não há um “outro” lugar (ou dimensão) para onde se vá. A percepção da realidade  - assim como o agente de cognição que é consciente e percebe - é que muda.
Do ponto de vista Vedanta a mente não é auto-luminosa, isto é, ela não tem a capacidade de ser consciente por si mesma. Assim como a lua reflete a luz do sol, e assim parece possuir luz própria, também a mente individual possui a condição de atenção por conta da Consciência, substrato de toda a realidade. É por isso que à mente linear não  lhe é possível compreender a Consciência (ou a Realidade, ou o Amor) pois esta última é prévia à primeira.
Assim tudo começa no ponto em que percebemos a ilusão da existência em si mesma de nossa mente. Esta é uma construção favorita da personalidade, naturalmente, pois traz vida e importância para a mesma. Esta construção se sustenta a cada agitação mental desnecessária, a cada recordação que fazemos de nós mesmos. É por isso que para o aprendizado de meditação tudo começa com a aquietação da mente.
abraços
marcos

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Qual a nossa batalha?

A idéia por vezes subliminar de que os obstáculos a enfrentar assim como as causas de nossas dificuldades são eventos, circunstâncias e fatores externos a nós mesmos é uma grande ilusão em regime moto-contínuo.
De um modo muito simplista pode-se dizer que não existe uma “causa” externa para um problema que enfrentamos, a causa vem de uma raiz bastante mais ancestral, vêm de tendências de probabilidade acumuladas ao longo de muitos e muitos ciclos. Estas tendências são chamadas samskaras: são a concretização - no sentido causal – da produção infindável de desejos, intenções, hábitos repisados, ou seja, do karma. A partir da integração de todas estas tendências se produz a situação – individual e coletiva – de um novo ciclo. Segundo o Vedanta é esta situação que se concretiza a cada instante como o Presente (!!!) em nossas vidas. Ilusoriamente simples.

De novo: o Presente nada mais é que a expressão perfeita de seu caminho – ou Dharma! A não aceitação e participação integral no presente gera mais e mais tendências de probabilidade e assim a roda quase infinita de mortes e renascimentos permanece girando.
Conclusão: a única forma de (1) deixar de gerar novas tendências – karma, e (2) compreender, viver e percorrer seu Dharma, é viver no Presente.
Seria o equivalente a dizer que o Presente sempre é perfeito, em um tom mais emocional. Sob este ponto de vista fica evidente a ilusão de se colocar no ambiente, no mundo, na família, no vizinho, no marido, a “culpa” pelo que vivemos. É simplesmente falso. O obstáculo real nunca é externo. Ao final o único obstáculo real é a aceitação da plenitude no presente.
Cada instante do Presente representa a soma de infinitas correntes de probabilidade que se concretizam neste momento específico; na visão do indivíduo a trilha da soma destes instantes é a concretização das condições causadas por tendências anteriormente criadas; oculta em cada um dos passos desta trilha está a possibilidade de realização maior do indivíduo, seu Dharma. A chave: reagir com todos os seus sistemas disponíveis (mente, prana, corpo) apenas ao presente que se sucede a cada passo.
Boa sorte!
abraços
marcos

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O que permanece?

A raiz do sofrimento humano é a mudança. Uma grande fundamento dos ensinamentos do budismo é a impermanência. A compreensão - ainda que em seus estágios iniciais – da realidade mostra quão ingênua e profunda é a crença no controle e na permanência. Em toda a área e volume do castelo interno construído sob a ilusão da personalidade não existe sequer um tijolo que seja permanente. Escolhendo o exemplo mais doído: a própria personalidade é absoluta e inevitavelmente impermanente; para não gastarmos argumentos basta considerar a morte. A história pessoal cimentada na memória busca incessantemente a propriedade de continuidade e identidade única, quando basta um exame mais límpido para percebermos como a própria trilha histórica deste “eu” é uma colcha de retalhos mal costurada, com identidades variadas e variantes, tanto em relação a situações específicas quanto em relação à passagem do tempo. Então o que resta no nosso mundo interno que seja permanente?

Naturalmente toda a realidade externa percebida é absolutamente impermanente; a natureza o demonstra a cada ciclo, a cada era glacial, a cada ano, a cada minuto. Um bosque observado às 9h11min30seg não o mesmo bosque observado às 9h11min31seg. Por um outro lado toda a estrutura do universo é dinâmica. Quando olhamos pelo microscópio a constituição das partículas atômicas é intrinsecamente incerta (Heisenberg), vazia e em movimento. Quando olhamos pelo telescópio a constituição das galáxias e do universo distante basicamente existe vazio e movimento – e incerteza. Então o que resta no mundo externo que seja permanente?

Ainda mais, porque cargas d´agua haveriam de ser permanentes justamente as condições de existência de nosso pouco humilde “eu” se acreditando atuante, importante e real?

A condição de permanência em nosso mundo de pensamentos está intimamente vinculada à crença e necessidade de controle. Necessitamos do conforto psicológico de acreditar constantes certas referências. Referências externas (casa, cidade, família, emprego) e referências internas (identidade). São todas referências em constante mudança. E cremos que podemos controlar o andamento do mundo de acordo com nosso próprio óculos – engano brutal, não há nada que possa ser controlado neste sentido. A memória presta uma ajuda enorme em solidificar a ilusão de controle pois cria uma mesma imagem que se sobrepõe ao presente, à realidade. É por isso que o bosque das 9h11min31seg não parece diferente daquele das 9h11min30seg.
Enquanto nos identificamos através de referências, a cada vez que há mudanças nestas referências há sofrimento. A mente, em sua porção “ahamkara”, fundamenta a ilusão da posse sobre a realidade através das referências criadas, sendo a mais sutil de todas a noção do “eu” contínuo.

Assim o processo de prática meditativa – ao final o caminho do auto-conhecimento – é um contínuo despertar para a ilusão do que parece calçar nossa identidade. A busca sem descanso do que de fato permanece ao longo de todas as experiências pode nos levar a compreender com discernimento quem somos e o que é o mundo. Nisargadatta disse algo como “aquilo que não é real nunca existiu, aquilo que é permanente nunca morre”.


abraços


marcos

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Estados possíveis

O modelo do átomo nuclear - análogo ao sistema planetário – é aquele que mais comumente temos como representação do mundo atômico, e traz de modo subjacente a idéia de bolinhas concretas, massa firme, como bolas de bilhar. Algo concreto,observável, “real”.
A física quântica avançou neste campo e concluiu que não existem tais “bolinhas”, mas sim faixas (degraus) em que existem ondas de probabilidade de existência de matéria. Esta função de probabilidade da onda é que define sua natureza. Há uma probabilidade de a partícula estar em determinada região ou em outra dentro destas faixas. Os estados de existência são determinados pela probabilidade de ocorrência nestas faixas. A energia existe fisicamente em pacotinhos de tamanho determinado, e as condições de existência da matéria são neste sentido “quantizadas”, ou seja, existem regiões em que é permitida a existência. Por isto se usa a expressão saltos quânticos, há um salto de uma faixa a outra, sem que se percorra um caminho entre as duas.
O Vedanta Advaita explica a realidade através da relação observador-objeto de modo análogo. Existem níveis possíveis de relação entre aquele que observa e aquilo que é observado, são faixas de probabilidade de nos relacionarmos no mundo. Analogamente à física é possível “saltar” de um estado para outro, mas sem que se percorra um caminho. O ocidente reconhece dois níveis de consciência: vigília e sono. Para o Vedanta existem cinco estados possíveis: sono, pensamento, observação, concentração e meditação. A realização de si mesmo ou estado último, é chamado samadhi. Estes estados são analisados e explicados por Patanjali, Sankara, e em mais detalhes e de modo mais didático por Sesha.
Conforme nos relacionamos de modo mais ou menos presente em relação à realidade podemos nos encontrar em um ou outro estado. A questão fundamental para nós - aprendizes de aprendizes - compreendermos é que o agente de percepção (sujeito) que é consciente do que ocorre em cada um dos estados é diferente. O sujeito a que estamos habituados é a personalidade, o “eu”, que está presente no estado de pensamento. Como nos habituamos a viver 99,9% do tempo pensando, nos habituamos a acreditar que o “eu” é o único agente de percepção que existe. É um grande engano. Este “eu” necessita ser pensado recorrentemente para existir; em outros estados de relacionamento consciente com a realidade outros agentes de percepção (testemunhas) são conscientes do que ocorre. O estado mais profundo e pleno de consciência – a meditação – por exemplo, tem como agente consciente o Atman, nossa essência mais profunda. Nas palavras de Sesha “Atman é aquele agente cuja condição consciente, ao conhecer tudo o que potencialmente existe, não detecta o conhecido como diferente de si mesmo”.
O estado mais “próximo” de nossa habitual e pensada realidade que traz um agente de percepção que não é o “eu” é chamado de observação (pratiahara em sânscrito). Este é o estado que em nossa linguagem comum descrevemos como “estar muito concentrado no que faz”. Já neste estado não há o comum sujeito “eu”, mas, claramente, há consciência. O instante de surpresa ante uma pintura espetacular, um atleta em plena competição, um músico virtuoso se apresentando, a leitura de um livro que se gosta muito, são exemplos de estado de observação. São instantes em que o “eu” não se encontra, instantes em que somos mais presentes, mais produtivos, mais plenos e vivos. Instantes que logo fogem quando acionamos de volta o mecanismo da memória, e em um salto quântico reaparece o “eu”, buscando se apropriar de um momento que não viveu.
A prática interna e externa possibilitam que comecemos a reconhecer em que estado nos encontramos: sono? pensamento? observação?... Este músculo do discernimento que começa a ser desenvolvido é o sustentáculo da trilha do auto-conhecimento.


abraços,


marcos