sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Samsara e karma

Karma é o potencial de ocorrências futuras que geramos através de nossas ações, palavras e pensamentos. Não é algo em si mesmo bom ou ruim, é apenas a concretização da lei de causa e efeito. Porém em uma dimensão muito, mas muito maior do que podemos conceber.
Imaginemos um tecido que, em vez de possuir duas dimensões (como uma tela de algodão bem fina) possui n-dimensões, com infinitas tramas que se cruzam e re-cruzam. Cada uma destas tramas é composta de fios de algodão multi-dimensional, e cada um destes fios tem sua densidade, cor e textura características. É nesta trama sem tempo que navegamos escorregamos e nos envolvemos – enquanto centelha de essência – ao longo do nosso longo, longo, longo ciclo de existência.
No Vedanta, para efeito didático, se consideram três tipos de Karma:
sanchita karma: todo o imenso tecido de karma constituído desde o início do ciclo de existência individual;
prarabdha karma: pequeno retalho do sanchita karma, o tecido desta existência específica (desta personalidade temporária);
agami karma: novos ramos e tramas de tecido construídos nesta existência específica;
Assim surge naturalmente a pergunta: como criamos karma? E como é possível dissolvê-lo? De modo bem simples criamos karma de dois modos: quando buscamos o fruto de nossas ações ou quando nos colocamos como “fazedores” da ação. Estas duas vertentes tem em comum a presença – no nascimento da motivação da ação – da personalidade, o “eu”. Assim, se utilizamos nosso sistema físico-emocional -mental de modo puro – isto é, sem o desejo de obter o fruto para si mesmo, sem a pretensão ilusória de ser quem faz a ação – não há geração de karma. Isto ocorre em estados de consciência em que não há a presença do “eu”, como a observação, a concentração e a meditação – e o sono, graças a Deus.
O estado em que vivemos 99,99% do tempo em que estamos acordados é o estado de pensamento, que existe sempre que há o “eu” pensando. É neste estado em que se gera – quase constantemente – karma. Em outras palavras estamos constantemente tecendo as novas fibras potenciais do imenso tecido, aumentando e aumentando estas tramas. Na linguagem do mestre cristão Daskalos estamos quase continuamente gerando “formas-pensamento”: são os pensamentos encharcados de desejo – qualquer que seja sua natureza. E estas formas-pensamento são de fato criaturas vivas, energizadas por nossa própria vitalidade, e tem como missão de vida fazer cumprir o desejo que as gerou. É deste modo que podemos enxergar como muitas pessoas se transformam em escravos de suas próprias formas-pensamento, seus mais queridos bichinhos de estimação, que acabarão – como nos mitos – por devorar o mestre.
Estas formas-pensamento também tem seu aspecto coletivo, que fica muito evidente em casos de violência (por exemplo: TV transmitindo sequestro ao vivo), pornografia, torcida de futebol, etc. É muito fácil nos vincularmos a uma forma coletiva – basta visitar um shopping-center e observar em si mesmo como a forma coletiva do desejo de consumo se apresenta e traz efeitos em seu próprio sistema emocional. É assim que a grande trama do karma forma também o tecido potencial de grupos, como cidades e países.
Vinculado ao conceito de karma está o ciclo incessante de existências, a roda de samsara no budismo. Giramos e giramos a roda, sempre caindo e voltando aos mesmos pontos, até que comecemos a nos dar conta, a tomar consciência. Podemos observar o micro-cosmo desta roda dos éons em nosso minúsculo ciclo de vida atual: quantas vezes já não caímos nas mesmas armadilhas pessoais? Situações que se repetem e padrões de resposta idênticos; grande alegria e prazer, seguido por grande dor e sofrimento... e assim segue nossa vida. Agora potencialize isto través dos milênios, e podemos ter um pequeno vislumbre da imensa roda de samsara, motorizada por nossa não menos imensa ignorância.
Como encontrar a solução para o karma e o samsara? Comecemos com os pequenos passos dos infantes neste assunto: prática da meditação e atenção aos pensamentos e atos, aquilo que temos sempre trazido aqui. Esta é a busca.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Medo e certeza

“O medo é tão somente a ausência da certeza de Ser”. Assim, de modo fulminante, explica Ivan (Sesha) o sustentáculo de todas as nossas mais profundas justificativas para nosso arsenal de hábitos repetitivos tão intimamente conhecida como “eu”. E como nosso incansável operário padrão chamado mente tão raramente cessa de operar, nos é quase inalcançável a compreensão desta simples sentença. De fato, para a maquina de operações lineares conhecida por mente, tal compreensão é inalcançável.
Não consta do leque de possibilidades desta máquina compreender as grandes verdades (Mahavakyas, como por exemplo ‘Tat Tvam Asi’, ‘Tu és Aquilo’), assim como não consta do leque de possibilidades do ser humano voar (sem ajuda), ou como parece inconcebível para o círculo plano o volume da esfera.
Apenas através da prática, da busca incessante, do desapego dos desejos, é possível se tornar digno de compreender estas verdades. Sim, uma questão da dignidade, de amadurecimento do Ser. Através deste caminho sem mapas, sem quilometragem ou GPS, aos poucos (ou não) se esgarça o grosso tecido dos desejos sem fim da personalidade, e neste pequenos vazios que surgem da trama do tecido há um potencial risco de se compreender quem somos.
Daí que compreender que o medo é a ausência de certeza de Ser se torna talvez tarefa (ou diversão) para vida(s). Por agora bastaria para nós – potenciais discípulos da busca - que tomássemos um minuto para admirar nossa ignorância. Sentemos à beirada da montanha, abaixo este imenso vale, observando a grande obra: a ilusão de que somos separados do que vemos e vivemos. Deste cenário de ilusória solidão nasce o medo primordial, e desde este ponto – comum a todos nós – se abrem miríades de naturezas de medos e seus derivados, que são afinal os pilares da personalidade – do “ eu” – tão estudada pela psicologia.
O que nos cabe não é buscar mais justificativas para esta construção, mas sim buscar a realidade por entre e por trás desta construção.
Saber que existimos é um ato natural, é uma das poucas coisas que podemos ter certeza que sabemos, pois nos damos conta que somos. Esta compreensão sempre existe. O problema é a dúvida que aparece em seguida. Se não abrirmos brecha para a dúvida (prática, prática, prática, desapego, desapego, desapego), esta certeza permanece viva por um pouco mais de tempo. Neste momento não há pensamento que surja, pois a raiz dos pensamentos está na agitação mental, motorizada pela dúvida. A admiração genuína e profunda pelo fato de que existimos nos leva a uma quietude sem limites, quando é possível se dar conta da consciência que permeia o que se chama de espaço, se dar conta de que somos esta consciência que ilumina o espaço, e também o que quer que seja iluminado. Este é um estado de não-dualidade.