segunda-feira, 30 de maio de 2011

Perguntas simples

As perguntas mais simples nos dão as chaves mais diretas para a percepção de que no nosso âmbito habitual do pensar reside um espaço amplo de ignorância.
O que, neste mundo, é permanente?
O que é real?
Quem é que percebe o que se passa?
O que é consciente da própria consciência?
Acordamos todos os dias nos lembrando do que éramos antes para poder reconstituir nossa própria identidade, entretanto percebemos, mais dia menos dia, que mudamos, sempre. Nosso corpo muda, amadurece, decai; o ambiente muda, as pessoas em volta mudam, nascem e morrem. A natureza é só mudança. E o homem é parte disso. Sabemos a teoria porém jamais compreendemos.
Internamente as coisas são um pouco mais complicadas. Na sopa de caos de um pensar ininterrupto nada tem firmeza, nada tem eixo. É na areia movediça das lembranças e repisares de hábitos de estimação que buscamos incessantemente fortalecer as raízes de uma história personalística, seus desejos, orgulhos e razões. 
Assim tentamos construir nossos castelos de areia à beira das ondas de ressaca da vida.
Não sabemos o que é Ser, e procuramos disfarçar e preservar o conforto aparente da ignorância com o parque de diversões de um dia a dia, noite a noite, mês após década de acúmulo de bens ideais ou materiais, futilidades divertidas e justificadas, aceitas e demandadas por toda a tribo, nossas famílias, comunidades e sociedade grupalmente afundadas na mesma ignorância. 
Há algo além disso, anterior a isso.
Há algo que sempre está, que é consciente do que se passa, e é consciente de ser consciente. Há algo que não tem história, que não tem dúvida. Há algo que é pleno simplesmente existindo e atuando conforme os trilhos do viver requerem, e neste atuar é mais eficiente e inteiro do que qualquer força de vontade poderia nos levar a ser. Há algo que não tem vontade de ser algo mais. Este algo já está bem aí, sempre esteve. Este algo é real e permanente, e é de verdade o que existe. Este algo é o que você é, antes de você existir - cronologicamente no nascimento ou no instante mesmo de pensar em si após ler esta frase.


Abraços,
Marcos

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Discípulo

Discípulo é uma palavra raramente utilizada nos discursos que habitualmente proferimos a nós mesmos quando desenhamos nossos planos de futuro e crescimento na vida.
Porém talvez seja uma das poucas palavras que certamente deveria ser parte integrante de todos os cenários que desenhamos para nossos poucos dias por aqui.
Afinal, qual de nós já está auto-suficiente em seu próprio pedestal de conhecimento e sabedoria? Se há hipótese de sabedoria há certeza de ignorância. Basta olhar em volta, para fora ou para dentro, e só o que vemos são inumeráveis mistérios que pedem para ser revelados.
Assim a trilha de conhecimento, em especial a de auto-conhecimento - ainda que por princípio solitária - é uma trilha de discipulado, uma caminhada com companheiros que já conseguiram enxergar um pouco mais longe do que nós. Se não é este um caminho que vale a pena buscar, qual seria? Chegar a ser um discípulo é uma honra, ter a chance de investigar e compreender é uma dádiva. Já encontrar um mestre... é provavelmente resultado de muitas buscas anteriores.
O que faz um discípulo? O Vedanta detalha cuidadosamente as qualidades de um discípulo (adaptado de Vedanta Advaita: não-dualidade, estados de consciência, prática meditativa e , cosmologia Vedanta; Sesha):
- Viveka: discernimento ou discriminação metafísica
- Vairagya: desapego mental dos objetos
- Satsampatti (seis tesouros):
     - Sama: controle da mente 
     - Dama: controle dos sentidos
     - Uparati: habitualidade de controle da mente dos sentidos 
     - Titiksa: fortalecimento ante os pares de opostos 
     - Samadhana: presença constante
     - Sraddha: fé no mestre e nos seus ensinamentos
- Mumuksutva: ardente desejo de liberação 
A nós nos interessam as duas primeiras qualidades, que são a base de construção deste edifício do discípulo. 
O florescer das seis qualidades tem como pré-condição uma mente quieta, o que ocorre com o desenvolvimento do discernimento e do desapego. E tentar compreender com nossa pobre mente personalística, por exemplo, o que é o desejo ardente de liberação não passa de uma “viagem na maionese emocional” sem que tenhamos nosso discernimento amadurecido.
Portanto para nós é crítico buscar compreender o que é Viveka, o discernimento, que implica saber distinguir entre o que é o Real e o que é o ilusório, uma profunda compreensão interior que nos leva a agir sem dúvidas. Bem simples...  Uma pista: tanto a compreensão quanto o Real só existem no instante presente (!!).
Buscar renunciar ao mundo, à ação, sem ter o disernimento apropriado é um grande engano. Ivan explica: “Vairagya é a renúncia mental aos objetos de sensação; é impossível  renunciar ao que não se conhece. A renúncia não leva ao conhecimento... é o conhecimento que leva à renúncia. A obtenção de discernimento induz, de maneira espontânea, uma forma de ver o mundo sem apego.”
O Vedanta como linha de pesquisa é em si mesmo um paradoxo: para realmente compreender seus ensinamentos é necessário um discernimento estabelecido e fino; porém aquele que possui este discernimento já não precisa dos ensinamentos... Assim ficamos nós com a missão de, mesmo sem compreender profundamente os ensinamentos, buscar o amadurecer do discernimento. Por quê? 
Aguardo suas respostas...


Abraços,
Marcos

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Senna, alpinismo e presença

Então onde está este bendito estado de presença de que tanto falamos? Parece uma criação mental, uma construção teórica para explicar algo que jamais conheceremos. Entretanto basta um pouco de atenção para percebermos que está logo aqui, logo agora.
Em muitos dos grupos de meditação aparece a dúvida sobre a presença. E em todos eles cada indivíduo consegue localizar experiências de presença mais profunda. Em nosso dia a dia é muito comum encontrarmos exemplos de pessoas que buscam situações extremas pela sensação que delas advêm. Vejamos dois exemplos.
Segue um trecho de uma entrevista de Ayrton Senna:
“...Mas passei por uma situação de risco muito maior na tomada de tempo para a corrida de de Mônaco em 1988. Eu já tinha a pole, mas continuava na pista. A cada volta aumentava a diferença para os outros pilotos. Eu estava me superando a cada volta e entrei em outra dimensão. Não via a pista, ela tinha virado um túnel. A distinção ente o homem e a máquina deixou de existir, me fundi com o carro, viramos a mesma coisa. Depois de cinco voltas, acordei para a situação de extremo perigo em que estava e fui para os boxes.”
E aqui um trecho de uma outra declaração de um alpinista, na Revista Brasileira de Psicologia do Esporte e do Exercício:  “ É uma coisa só... quando você chega a este nível é o êxtase.  É quando você consegue se dissolver. Quando você esquece totalmente do seu ego. Então você entra neste turbilhão... até chegar naquele pico... que é o de se entregar totalmente... porque não adianta, chega num ponto tal que você dilui.”
O risco de situações extremas faz com que todo a nossa atenção, todo o nosso sistema esteja atento e pronto para responder ao que se passa. Com a continuidade deste estado (como nos casos acima) a atenção se coloca mais intensamente no presente que se sucede, e cada vez menos no “eu”, no sujeito. Até um ponto em que a própria realidade é consciente do que se passa, sem a necessidade de um sujeito que se aproprie da idéia de consciência.  Assim um estado de consciência denominado observação, ou, mais profundamente, concentração, emerge. Nestes estados não há um “eu” personalístico que viva a situação, no entanto a ação que se produz é mais eficiente e mais inteligente, e a sensação é mais plena e mais viva. Quem produz a ação, quem vive a sensação? A própria realidade. 
O que ocorre é que no instante seguinte reaparace a agitação mental, reaparece um “eu” que pensa e se percebe de novo diferenciado da realidade mesma (como Senna retornando aos boxes), um “eu” que guarda na memória estas experiências e tentará de tudo para vivê-las novamente... embora este “eu  nunca as tenha vivido de fato.
Todos temos dons, ou vocações, que são tendências e qualidade naturais que trazemos em nosso sistema de corpo(s) + mente, como era por exemplo o automobilismo para Senna. Se compreendemos isto e buscamos atuar em nossas vidas de modo a utilizar e viver estas tendências de maneira intensa, nos será mais fácil aprender a reagir sem dúvidas ante à realidade nestes campos específicos. Isto porém é só o princípio. Depois poderemos experimentar como transbordar estas experiências do viver sem dúvida para os outros campos de nossas vidas, para o nosso dia a dia. 


Abraços,
Marcos

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Morrer e viver

Ainda sob o impacto de ter perdido dois tios nos últimos três dias não me aparece outro assunto senão o morrer e viver.
Dizia Nisargadatta “the unreal never lived; the real never dies”, ou seja, “o que é irreal jamais viveu, o que é real nunca morre”.
Por que então sofremos tanto? Porque não conhecemos o que é o Real, porque vivemos imersos na ilusão daquilo que tem suas bases na ignorância. E o que é aquilo que nasce da ignorânica? O nosso universo auto-criado, nossa novela histórico-personalística que para tudo cria justificativas, que para tudo tem razões. O nosso permanente pensar sobre nós mesmos cria um mundo ilusório com o qual nos relacionamos a maior parte do tempo. São tendências que criamos e repisamos, vida após vida. Neste mundo ilusório habitamos, por vezes, em paraísos fugazes, por vezes em infernos repetidos. São habitações que nós mesmos contruímos, nossas próprias celas dentro das quais depois não encontramos a chave de saída. Esta cela é que, de certo modo, morre, e tem medo de morrer. Para o sujeito que vive nesta cela esta é a realidade; para aquilo que conhece a Realidade a cela é absoluta ilusão. 
Nossa prática, nossa busca última nesta jornada, é discernir entre a ilusão e a realidade, descobrir o que é afinal Real.
Para o Vedanta o Real é aquilo que não sofre mudanças, aquilo que é permanente, que existe sem ter tido início e que não tem fim. Sem dúvida muito longe do nosso mundo no dia a dia não? Na verdade não, não está longe, está bem aqui.
O Real não existe em nenhum outro lugar senão exatamente aqui, em cada segundo do dia a dia, o Real tem seu portal de entrada no aqui e agora, na presença intensa no que se passa, na entrega à certeza de que nada se controla, na absoluta convicção de que não existe sentido em buscar fruto pessoal em qualquer ação que se faça, na alegria de agir simplesmente porque é o que a realidade trouxe.
Vejam só: quando se está presente não aparece a dúvida! A dúvida é um sinal de que a cela de pensamentos personalísticos está ativa.
A realidade pode trazer o momento de se estar alegre, ou de sofrer. Presença é não ter dúvida sobre a dor ou sobre a alegria, é vivê-las de modo coerente e digno. Presença não é deixar de viver, ao contrário, é viver de modo absoluto, reagindo sem dúvida àquilo que se nos apresenta. 
A cada instante em que recriamos nossa cela personalística e nos metemos de volta dentro dela morremos para a Realidade. Por outro lado quando vivemos um momento de entrega e presença intensas morre a cela, morre o eu que depois terá medo de morrer, sem saber que nunca foi real. 
Nestes momentos de presença nos resvalamos com o brilho do que sempre existe, com a leveza de não carregar justificativas, medos e angústias, com a alegria de uma compreensão sem palavras, com a eternidade de ser consciente. E é isto o princípio do Real.


Abraços,
Marcos

segunda-feira, 2 de maio de 2011

a não-dualidade ocidental (parte 1)

Trago hoje dois extratos de diferentes autores para dar uma mostra de como a não-dualidade e a presença são algo natural em nossa existência, sendo apenas veladas pela ignorância da separatividade do “eu”.
Primeiro vejamos este parágrafo atribuído a Plotino, conhecido filósofo neo-platônico, um dos ocidentais mais próximos da filosofia oriental não-dual.
“...de onde estamos, é possível ver o uno e a nós mesmos, resplandecidos, pela luz da percepção, mais ainda, tornamo-nos a própria luz, pura, sem peso, leve, nos tornando luz divina, ou sendo uma divindade, inflamados. Mas, ao voltar a cair o peso sobre nós, o fogo se extingue... Será possível permanecer lá? Nem ao menos saímos inteiramente daqui. Mas haverá um momento em que a contemplação será contínua, para alguém que não for estorvado por nenhum obstáculo corporal. Além do mais, não é a parte com a qual se vê que está estorvada, mas a outra, aquela que, quando a parte com a qual se vê deixa de contemplar, permanece ativa na ciência que se exerce nas demonstrações, nas provas e nos raciocínios da alma. Mas o ato de ver e a parte com a qual se vê não são mais a razão, são superiores à razão, anteriores à razão e acima da razão, como o é aquilo que é visto. No momento que realmente enxergar, é a si mesmo o que verá...Talvez não seja necessário dizer “verá”, mas “foi visto”, nem seja preciso falar de duas coisas, o que vê e o que é visto, pois essas duas coisas são apenas uma, uma proposta audaciosa. Pois, no momento que vê, aquele que vê deixa de ver, não distingue, nem imagina duas coisas, como se houvera tornado um outro e não estivesse mais encerrado em si mesmo.”
Esta é uma narrativa clara de uma experiência de estado de concentração externa  na linguagem Vedanta (dharana em sânscrito). A concentração é o primeiro estado não-dual que experimentamos. A concentração externa ocorre quando estamos com a atenção continuamente pousada sobre a realidade (objetos) que nos cerca, e não imersos em pensamentos e memórias acerca da realidade mesma. A ausência de interpretação aos poucos desfaz o véu de separatividade.
Quando Plotino explica “ao voltar a cair o peso sobre nós...”, isto se refere claramente ao fluxo de atenção que sai do objeto observado e se volta novamente para o “eu” à distância. Neste instante voltamos a nos diferenciar da realidade (voltamos a pensar, julgar e interpretar).
Quando diz “o ato de ver e a parte... são superiores à razão...” mostra que a presença em si mesma, a ação espontânea perante à realidade são superiores ao pensar sobre o mundo. Em concentração prevalece budhi (inteligência intuitiva, assento da consciência individual) e não manas (agitação mental).
E quando pondera que “Talvez não seja necessário dizer “verá”, mas “foi visto”, nem seja preciso falar de duas coisas, o que vê e o que é visto...” está claramente traduzindo a sensação de não-dualidade, de simultaneidade e ubiquidade que existe neste estado. Quando se está presente profundamente não há um observador diferente do objeto, não há um ator diferente da realidade, o próprio sistema se oberva a si mesmo e é auto-consciente do que se passa.
Em segundo este parágrafo oriundo de um pequeno conto de David Brooks que saiu na New Yorker (valeu Daniel pela indicação!) em que se conta de modo natural a sensação de um estado de observação no vocabulário Vedanta (pratyahara em sânscrito).
“...I believe we inherit a great river of knowledge, a flow of patterns coming from many sources. ..The brain is adapted to the river of knowledge and exists only as a creature in that river. Our thoughts are profoundly molded by this long historic flow, and none of us exists, self-made, in isolation from it... we still have deep impulses to erase the skull lines in our head and become immersed directly in the river. ..I’ve come to think that flourishing consists of putting yourself in situations in which you lose self-consciousness and become fused with other people, experiences, or tasks. It happens sometimes when you are lost in a hard challenge, or when an artist or a craftsman becomes one with the brush or the tool. It happens sometimes while you’re playing sports, or listening to music or lost in a story, or to some people when they feel enveloped by God’s love... Happiness is a measure of how thickly the unconscious parts of our minds are intertwined with other people and with activities.”
Interessante a nomenclatura: “when you lose self-consciousness” representa exatamente o aquietamento da agitação mental que dá raiz para o “eu”, e de fato se perde a referência de um “eu” que age, entretanto a ação é mais plena e profunda. E as “unconscious parts of our minds” são de fato o componente mental sutil que aflora quando a atenção está pousada na realidade, e que não está vinculado à ideia egóica (ahamkara). Todos nós já vivemos instantes destas situações que traduzimos como plenitude, paz, amor, etc. Este é o vislumbre da não-dualidade, única realidade Real, aquela que o “eu” jamais poderá viver.


Abraços,
Marcos