sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

aquilo que conhece

Algumas perguntas on e off line surgiram sobre o último texto – um instante sem “eu” – e achei que seria legal continuar com o assunto, talvez trazendo um vocabulário mais adequado.
A cultura ocidental é muito pobre na compreensão daquilo a que damos o nome de mente. Nossos ferramental, incluindo nosso próprio vocabulário, não é particularmente bem desenvolvido para expressar as tão variadas facetas da busca do auto-conhecimento ou da espiritualidade. Somos – nós ocidentais – mestres no entendimento da matéria, na análise (estudo em partes), e mesmo quando estas partes nos levam inexoravelmente ao todo, como a física quântica demonstra, ainda preferimos nos apegar aos aparentemente concretos e conhecidos pedaços.
No oriente, como na Índia, por muitos séculos se desenvolveram o estudo e a busca do conhecimento de si mesmo. Foi através da experiência pessoal de grandes sábios que o conhecimento se formou e foi, de certo modo, tornado acessível para nós, que não temos esta mesma experiência pessoal (ainda). Assim a língua e a filosofia se tornaram reflexos desta prática diária, deste modo de viver que era embebido da busca.
Isto nos traz de volta ao “eu”, tão querido e complicado. Segundo a linha Vedanta há que se compreender profundamente as relações entre três pontos básicos da experiência de viver: aquilo que conhece, o conhecer, e aquilo que é conhecido. Quando começamos a brincar com o “eu” estamos tateando o primeiro conceito, “aquilo que conhece”. Às diversas possibilidades de relação entre o conhecedor e o conhecido se dá o nome de estados de consciência, sendo que o estado em que habitualmente vivemos se chama “estado de pensamento” (quando estamos em vigília) ou sono (quando estamos dormindo). Existem, entretanto, outros estados de consciência, em que a relação entre o que percebe e o que é percebido muda conforme nos aproximamos da não-diferença entre ambos. Ao nosso amigo “eu” só é dada permissão de existência no estado de pensamento... mas isso fica para outro dia.
De fato há que existir um “ponto no universo que percebe uma extensão um pouco maior dele, permitindo ao universo que ele se auto-deslumbre”, como disse o Tatit no último comentário – aliás a descrição me parece perfeita. A questão a esclarecer é que este ponto não é o “eu” psicológico, o “eu” que registra sua história, tem passado, sonha com o futuro, tem RG, e vai morrer um dia. Existe algo prévio ao “eu”: a Consciência; o “eu” é um objeto perante a Consciência – isto é, a Consciência percebe o “eu” - mas a Consciência não pode ser percebida pelo “eu”. Vamos tentar avançar mais um pouco.
Segundo o Vedanta Advaita (outras linhas de estudo adotam diferentes terminologias e visões) o que existe é Existência (Sat) Consciência (Chit) e Bem-aventurança, Amor (Ananda) absolutas. A partir daí, como reflexos menos sutis, surgem as existências mais ‘concretas’. Em nosso assim chamado órgão interno mental (antakarana) temos um assento do reflexo desta Consciência maíúscula (chamado Chidhabaasa, algo como consciência individual); a partir daí se distingue o que chamaríamos (sem precisão) a capacidade de inteligência (buddhi), a massa mental, ou memória (chitta), e a movimentação desta massa (manas). Ao sentido de propriedade que surge da ilusão de que este reflexo da Consciência é diferente da mesma, se dá o nome de ahamkara, ou ego, finalmente a raiz do nosso pequeno e adorado “eu”... ufa!! Ao longo da vida a agitação constante da massa mental (atividade também conhecida como pensamento) reforça quase ininterruptamente a ilusão de existência individual – “eu”. Por isso se ouve tanto que “meditar é aquietar as agitações da mente”. A prática da meditação (interna) se sustenta na busca da compreensão daquilo que conhece. Conforme se aquieta a agitação da massa mental começa a ficar mais evidente a existência deste reflexo da Consciência. Sempre esteve lá, mas a agitação não permitia que aparecesse. É como água com areia: enquanto a água está em movimento e a areia em suspensão o líquido fica opaco; quando o movimento cessa e a areia sedimenta a água volta a ficar cristalina. Quando há esta paz, toda a atenção se volta naturalmente para sua própria fonte (o reflexo da Consciência) e é como se uma porta se abrisse para dentro (e fora) de tudo o que existe, “permitindo ao universo que ele se auto-deslumbre”, pois aí já não há dualidade, não há diferença entre o universo e nós.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Marcos, de novo por aqui... Difícil apreender muitos conceitos ao mesmo tempo. As vezes dá vontade de já saber algumas coisas sem ter de aprender - mais ou menos como tocar um instrumento. Por falar em instrumento, você acredita que algumas formas de pensamento - por exemplo, os expressos por uma poesia ou uma música - possam se aproximar desse conhecimento menos analítico?
um grande abraço

marcos thiele disse...

Oi Tatit,
que bom que você está por aqui.
Eu acredito sim que a arte muitas vezes nos aproxima desta compreensão maior. É só perceber quando lemos um poema, ouvimos uma música ou vemos um quadro, e algumas vezes surge uma sensação de união, ou um arrepio que corre o corpo, uma sensação de totalidade... quando isso ocorre é porque a construção desta forma de arte foi feita em um estado, digamos, mais Real. O poeta, por exemplo, estava neste estado quando compôs, e é isto que reflete em nós quando lemos a poesia.

Brinde: Fernando Pessoa

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.