quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Abstinência

No encontro da semana passada do grupo de meditação conversamos sobre o cultivo de um primeiro nível de discernimento em nosso dia a dia. 
A colcha de retalhos (também conhecidos por elementais, hábitos, ec.) que é nossa personalidade tem alguns poucos mecanismos básicos de negociação para garantir sua sobrevivência segundo as tendências (samskaras) trazidas no pacote deste ciclo de vida. Os primeiros passos no auto-conhecimento são direcionados a conhecer, ou reconhecer, estes mecanismos. Esta etapa não é muito complexa, e sempre vem acompanhada de assombro, surpresa, dor, emoção, etc. Porém a descoberta é apenas o começo. Muitas vezes nos apaixonamos ainda mais por estes mecanismos, nos dedicamos a estudá-los em detalhes , em toda a sua profundidade, e assim garantimos que nunca nos preocuparemos a encontrar a saída do labirinto, apenas nos deixamos passear mais e mais dentro dele. A questão não é descobrir causas ou detalhes destes mecanismos-raiz, mas sim reconhecer sua existência, e a partir daí aprender a desinflá-los, dia após dia.
Estes mecanismos só existem, naturalmente, como forma de expressão da identidade “eu” no mundo; enquanto forma, só existem como pensamentos. Assim, uma presença intensa no cotidiano naturalmente murcha a bexiga destes mecanismos. A reação natural e espontânea ante aos acontecimentos trazidos pelo presente deixará um espaço potencial cada vez menor para se enfiem as unhas compridas da personalidade no corpo do presente.
Mas como fazer no nosso dia a dia? Uma boa pista é buscar estar consciente de cada decisão que tomamos, em vez de nos deixarmos levar por um maremoto de possibilidades construídas mentalmente, que pouco tem a ver com a realidade. É uma primeira aproximação ao que o Ivan chama de estado de não-dúvida. Por exemplo: você precisa ir à academia fazer ginástica; perceba o que é mais inteligente neste momento e resolva. Não é uma questão de dever ou moral... ir ou não ir à academia não é o ponto. O ponto é o processo: se você está metido em uma dezena de razões para não ir, ou para ir, já estamos mal...
Uma outra pista é aprender a reconhecer cada vez mais prontamente as negociatas internas que fazemos para “ganhar” algo a que nos apegamos muito, geralmente de fundo emocional. Por exemplo: já que tive um dia muito difícil eu mereço comer esta barra de chocolate! Tudo bem, não precisa ser comida, podem ser duas horas de internet, ou um copo de uísque, ou..., bom cada um sabe bem de suas próprias negociações... especialmente nas relações. Se há negociação há um “eu” buscando justificar. Um modo rápido, mas não tranquilo, de perceber estes nossos apegos e justificativas é a prática da abstinência (por algum período de tempo, pelo menos) daquilo que apreciamos tanto. Observando as reações que surgem, a intensidade emocional, o arrazoado inteligente para burlar a própria proposta de abstinência, podemos ter uma pista do tamanho do poder que esta colcha de retalhos exerce, a potência com que estes mecanismos-raiz da personalidade nos subjugam, ainda que através de sutis e inteligentes justificativas.
Ao final, a prática da meditação é a abstinência última, a abstinência do próprio eu.

abraços
marcos

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