quarta-feira, 30 de junho de 2010

Pobre "eu" ignorante

Diz o Bhagavad Gita em sua décimo oitava estância:
Pura é a renúncia daquele que dizendo “devo fazer isto” cumpre sua ação devida sem interesse próprio ou desejo de recompensa. O renunciante, preenchido de pureza, não repugna as ações ingratas nem se aficciona às gratas.
De fato não é possível aos seres encarnados renunciarem inteiramente à ação. Assim, em verdade deve ser chamado renunciante aquele que renuncia ao fruto da ação.
Para nós, nascidos criados e firmemente enraizados nesta cultura ocidental estas slokas (versos) do Bhagavad Gita soam como um paradoxo, um verdadeiro mistério. Isto para as mentes agraciadas com um karma que traga a chama da curiosidade espiritual. Para outras mentes de pior sorte é simplesmente um texto indiano antigo que carece de sentido no mundo atual. 
Me fascina especialmente a proposta de ser renunciante em plena ação - é este o princípio fundamental do caminho da harmonia pregado por Morihei Ueshiba ao sintetizar o Aikido. 
A renúncia ao fruto da ação não implica inação, como bem explicam estas slokas; implica agir conforme se apresenta a realidade no momento presente, implica reagir utilizando todo o seu sistema (corpo, mente, sentidos) àquilo que se faz acontecer. Um pouco mais além, esta renúncia ao fruto implica estar totalmente Presente. 
O Vedanta Advaita explica de modo contundente os diferentes estados de consciência existentes e potencialmente disponíveis para os seres humanos. Em vigília (quando não estamos dormindo) normalmente estamos mergulhados no estado de pensamento. Conforme desenvolvemos o músculo da presença e se aquieta a agitação mental estados de maior intensidade de presença são experimentados: observação, concentração e meditação. Em nenhum destes outros estados há pensamentos, entretanto há Consciência e se atua de modo mais efetivo, natural e harmonioso com a realidade. Em nenhum destes estados (exceto no de pensamento) há um “eu” com história, memória e RG. 
Voltando ao nosso tema, não haverá renúncia enquanto houver um “eu” que se pense renunciando. Isto ocorre porque este “eu”, ao se considerar mais “evoluído” e “desenvolvido” por estar renunciando ao fruto de fato está obviamente criando o desejo por um outro tipo de fruto, talvez não imediatamente derivado daquela ação específica, talvez mais sutil, mas ainda assim um resultado futuro esperado (por exemplo: “evoluir espiritualmente”). Assim, o caminho para se conhecer o que é a renúncia à ação passa pela presença (de novo!!).
O mistério da renúnica ao fruto tem que ser pesquisado, tem que ser objeto de investigação diária nas atividades que fazemos. Neste quebra-cabeças muitas vezes algumas fichas relevantes caem quando nos damos conta do tipo de resultado que sutilmente (ou não) esperamos das ações que executamos no dia a dia. E nestes momentos se coloca em cheque o quanto realmente alguém está disposto a buscar a compreensão e o conhecimento de si mesmo e da natureza da realidade. 
É muito comum e fácil se alocar a responsabilidade pela existência de tantos desejos de resultados e frutos egoístas (voltados para cada “eu”) na sociedade atual, em suas regras explícitas e implícitas, em seus hábitos e costumes.  As organizações são exemplos disto, com seus sistemas de remuneração e incentivos. Daí muitas vezes surge a pergunta: “como posso tentar renunciar ao fruto da ação (estar presente!) quando minha empresa me mede pelos meus resultados?”. Embutida nesta ignorante questão estão duas crenças: a primeira é a crença de controle, acreditar que de fato através de nosso esforço e desejo é possível controlar o rumo dos acontecimentos; a segunda é a crença de que a entrega (presença, atuar em reação natural à realidade) vai produzir resultados piores, ou diferentes do que gostaríamos que ocorressem (!!!). Ora, é o mesmo que dizer que este pobre “eu” é maior que o Absoluto!
Há que se pesquisar internamente no dia a dia, e há que se disciplinar na prática interior de silêncio para que cada um a seu tempo possa se dar conta de seus mais profundos hábitos mentais, se dar conta das raízes mais sutis de resistência deste “eu” pensado e pensante, de modo que a possibilidade de viver em estado Consciente se torne mais provável. 
abraços
marcos

Um comentário:

Anônimo disse...

Marcos!
que texto lindo!
Inspirado e inspirador.
Dificil de alcançar como tudo a que temos nos propostos, e por isso mesmo , instigante.
Pobre eu ignorante! e nem aspas preciso.
Obrigada.
Um abraço com carinho,
Ligia